“SER ALGUÉM NA VIDA”..COMO ISSO AFETA AS CRIANÇAS?
Mas o que de fato significa ‘ser alguém na vida’? Quem define isso? Por que enquanto educadores, pais e professores, repetimos essa e outras frases, sem maiores questionamentos? Um texto que precisa ser lido...e experimentado na hora de BEM EDUCAR.
Por: Sheyla Fontenele


“SER ALGUÉM NA VIDA”..COMO ISSO AFETA AS CRIANÇAS?
Você já ouviu essa frase quando era criança: ‘Você precisa ser alguém na vida’ ! Eu aposto que sim. Mas o que realmente significa..’Ser alguém na vida...’ ? Muitas vezes, a afirmativa vem acompanhada de um exemplo: ‘Você tem que ser alguém na vida, igualzinho ao fulano de tal!’ E assim, começa uma corrida psicológica. Uma corrida para atender às expectativas dos adultos para caber em um padrão ela nem entende direito o porquê.
Mas o que de fato significa ‘ser alguém na vida’? Quem define isso? Por que repetimos essa e outras frases, sem maiores questionamentos?
Na escola, a frase ganha um complemento: ‘Você precisa estudar para ser alguém na vida’. É uma forma de justificar o empenho que a criança precisaria colocar nos estudos para ‘Ser’ alguém na vida. Mas a qual classe de estudos estamos nos referindo...? Só os da profissão? E qual o lugar dos demais conhecimentos que tanto servem de bússola à vida?
Eu sei que a frase — ‘ser alguém na vida’ — vem carregada de boas intenções. Os adultos que a dizem acreditam estar motivando as crianças. Mas será que, na prática, isso funciona? Será que essa forma de ‘inspirar’ não cria mais pressão do que incentivo?
E mais: o que realmente significa ‘ser alguém na vida’? Quem define isso? Por que repetimos essa e outras frases, sem maiores questionamentos?
A expressão ‘ser alguém na vida’ é corriqueira, e ganhou força lá no auge da Revolução Industrial, com a ascensão do capitalismo. Naquele cenário, SER ‘alguém’ significava ter sucesso financeiro, estabilidade e poder. A lógica era clara: ‘Time is money’ — tempo é dinheiro. Quanto mais cedo as crianças entrassem nessa corrida para alcançar esse ideal, mais rápido conquistariam o sucesso. Um lugar de destaque na pirâmide social.
O fato é que, ao longo do tempo, essa mentalidade foi se espalhando, entrando nas famílias, nas escolas e em todos os grupos sociais, até virar um discurso padrão. E assim, a criança cresce ouvindo: ‘Olha, o tempo passa rápido! Logo você vai ter 30, 50, 80 anos... e precisa ser alguém na vida.’
Mas o que está por trás dessa frase? Há duas expectativas embutidas aí. Primeiramente, a ideia de que a vida se resume as conquistas materiais. Segunda, de que existe uma corrida para ocupar um lugar no ranking social.
Agora, veja bem, eu não estou afirmando que devemos descuidar da vida material. De forma alguma. Pelo contrário: acredito que a educação financeira deveria ser ensinada desde cedo, tanto nas escolas quanto em casa. Saber manejar os próprios recursos, preservar o patrimônio e investir são habilidades fundamentais para uma vida equilibrada.
Mas tem algo que a gente não pode ignorar: nossas crianças não precisam crescer para ser alguém na vida. Porque elas têm uma vida. Uma vida de criança que precisamos entender o que significa. Elas já são alguém agora, com sentimentos, sonhos e uma maneira singular de ver o mundo. Respeitar isso significa acolher a criança como ela é, valorizando suas brincadeiras e o tempo de ser criança. E muitas vezes elas nos surpreendem com lições valiosas de sabedoria e humanidade. E precisamos de cuidados para não formatar padrões que não lhes pertencem, e que poderão comprometer toda a vida. Então, como educadores precisamos redimensionar o sentido do que significa, de verdade, ‘Ser alguém na vida’.
Refletiremos sobre duas rotas educadoras baseadas em um axioma da Pedagogia Logosófica, criada pelo humanista argentino González Pecotche, inspirador dos textos que escrevo, vídeos e das experiências que vivo.
O axioma é esse:
‘Quem quiser chegar a ser o que não é deverá principiar por
deixar de ser o que é’.
Quando alguém nos pergunta ‘quem somos?’, é natural que comecemos a responder com nosso nome, nossa profissão, onde moramos, ou até mesmo de quem somos filhos. São informações que dizem muito sobre os papéis que desempenhamos socialmente.
Mas e se tirarmos todos esses rótulos? Se deixarmos de lado as profissões, a nacionalidade, a classe social? O que sobra?
O que resta é o ‘EU’. O núcleo mais profundo do nosso ser. Aquilo que não depende de onde estamos, do que fazemos ou de quem viemos. É esse EU que carrega nossos valores mais íntimos, nossos sentimentos mais verdadeiros. É o ser que resiste ao falso, à mentira, ao que é arbitrário, ao que é passageiro.
Esse ser, em conformidade com a ciência e pedagogia logosófica, é a nossa essência. É o nosso espírito.
E ele está sempre ali, nos chamando para olhar para dentro. Convidando a reconhecer nossa humanidade, a corrigir nossas imperfeições e a abraçar, com valentia, o trabalho diário de nos tornarmos pessoas melhores.
PRIMEIRA ROTA: EDUCAR A CRIANÇAS A SER ‘O QUE AINDA NÃO É’.
Conforme o axioma, o foco educativo precisa se concentrar no ensino de valores morais e éticos. Lembro de uma cena muito especial que retrata essa questão. Quando trabalhava na escola logosófica, assisti uma aula com uma turma do primeiro ano do Ensino Fundamental sobre ética. A professora perguntou à classe:
— ‘Alguém sabe o que é ética?’
Uma menininha, com aquela simplicidade e sabedoria próprias da infância, sorriu, e respondeu sem hesitar:
— ‘É fácil. Ética é quando eu sou a mesma pessoa, mesmo quando a minha mãe não está olhando.’
Todos riram. Mas dentro de mim, aquela frase ressoou forte. Porque ali, naquela resposta tão singela, estava um dos maiores ensinamentos sobre o que significa ... ‘ser alguém na vida’... E aprendi com uma criança de 6 anos..Ser ou não ser, dizia Shakespeare... eis a questão.
Para educar as crianças a serem o que ainda não ‘são’, precisamos ainda ensiná-las sobre o que é a vida. Mas aí surge uma pergunta: nós mesmos sabemos o que é a vida? Qual é o propósito dessa jornada? O que temos feito com essa grandiosa oportunidade de viver?
Hoje, existe algo que considero extraordinário na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): um componente curricular chamado ‘Projeto de Vida’. Fantástica essa ideia! Mas para que esse componente realmente faça sentido, os conteúdos ensinados precisam ir muito além de orientar as crianças sobre qual profissão desejam seguir. Um verdadeiro Projeto de Vida precisa falar sobre a vida, sobre o sentido dessa vida.
E mais: ele precisa ensinar que a primeira vida acontece dentro de nós. É aquela que vivemos por dentro, na relação com o nosso próprio ser.
O que pouco se pensa — mas é urgente que comecemos a pensar — é como ser alguém em relação a si mesmo. há tanto que precisamos aprender e ensinar sobre esse ser desconhecido que somos! É hora de despertar para isso e mostrar às crianças que elas têm a capacidade de adentrar suas próprias mentes, de construir os seus valores, de forjar riquezas internas.
E como essas riquezas se constroem? Através das nossas escolhas. Desse modo, fazer escolhas é ensinar a selecionar. Selecionar pensamentos, palavras, sentimentos e ações. Selecionar o que permitimos entrar no nosso mundo interno. E ao fazerem essas escolhas, estamos ensinando-as a serem donas de suas próprias vidas. É isso o que significa ‘Ser alguém na vida’.
E o contrário disso? E ser guiado. Ser levado por normas, convenções e intenções que nem sempre são as nossas.
E para chegar a ser o que ainda não é, é necessário ainda que a criança perceba que estamos interligados. E que a vida humana é um sistema conectado, onde cada ação, por menor que pareça, tem impacto. Logo, um Projeto de vida ajuda a criança a compreender também ser um servidor dessa vida: ajudar o outro a se reconhecer, a se protagonizar, a construir as suas próprias riquezas internas.
Você já ouviu falar do efeito borboleta? Ele mostra exatamente o nível dessa conexão. Há um ditado que diz que o bater de asas de uma borboleta em um canto do planeta pode provocar uma tempestade do outro lado. À primeira vista, isso parece impossível, não é? Afinal, o que podem fazer asas tão pequenas e frágeis?
Mas a verdade é que, quando uma borboleta bate as asas, ela desloca uma quantidade minúscula de ar. Esse movimento pode parecer insignificante, mas influencia as correntes ao seu redor, criando ondas que se propagam e podem desencadear resultados enormes e inesperados.
Essa metáfora é perfeita para levar a criança a compreender que nossos pensamentos, palavras e gestos, por menores que pareçam, criam ondas invisíveis que percorrem a órbita das nossas relações humanas. E, assim como o bater de asas de uma borboleta, tudo o que fazemos importa.
SEGUNDA ROTA: DEIXAR DE SER O QUE SE É
‘Deixar de ser o que se é’... Como assim? Parece confuso à primeira vista, mas na verdade, esse é um conceito poderoso.
González Pecotche, nos convida identificar o que ele intitula de deficiências psicológicas — um termo original dessa ciência. Mas o que são essas deficiências? São pensamentos que nos conduzem a comportamentos prejudiciais, que atentam contra os nossos sentimentos mais nobres e comprometem a formação do ser integral. Exemplos? A teimosia, a vaidade, a irritabilidade, a desonestidade, a soberba, a brusquidão... São muitos.
E o mais curioso? Essas deficiências não são inofensivas. Se forem alimentadas, podem prejudicar não apenas a nossa convivência, mas até a própria vida. Por isso Pecotche desenvolveu um método educativo que nos ensina a conhecer, bloquear, debilitar e anular essas deficiências psicológicas. Esse método inclui o cultivo de valores, que funcionam como verdadeiras ‘antideficiências’ — e que funcionam como defesas mentais que nos ajudam a combatê-las desde a infância.
E aqui está o ponto importante: essas são as verdadeiras deficiências humanas. Não as físicas. Porque elas enfeiam o caráter.
Para melhor compreender o tema, sugiro que leiam o livro ‘Deficiências e propensões do Ser humano’, cuja referências deixo a seguir. Não vou dar spoilers, mas um dos pontos centrais desse método é: transformar a mente em uma oficina prática. Imagine que nossa mente é como uma oficina onde trabalhamos, selecionando os melhores pensamentos para guiar o nosso dia.
Então, transformar nossa mente em uma oficina de pensamentos é um trabalho diário, mas é a chave para deixar de ser o que não queremos ser.
E agora, reflexões para ‘ vir a ser’...
1. Em vez de ‘Você precisa ser alguém na vida?’, pergunte: ‘O que te faz feliz agora?’
2. Ao invés de pensar no sucesso futuro, valorize o presente: Celebre o que a criança já sabe e faz bem hoje. Sucesso para você é uma coisa, para criança, poderá ser simplesmente, brincar com o cãozinho na varanda, no quintal..te dar um beijo...comer pão com goiabada..percebem?
3. Ensine valores. Aqui no canal já conversamos muito sobre valores essenciais: colaboração, amizade, ética... São eles que moldam o ser e nos acompanham por toda a vida. Notas, diplomas e títulos são importantes, mas o que realmente nos define é o que somos por dentro.
4. Seja o exemplo. As crianças aprendem muito mais com o que fazemos do que com o que dizemos. Mostre, na prática, que ser alguém é ser feliz, autêntico e generoso. Como dizia Gandhi: “Seja VOCÊ a mudança que deseja ver no mundo.” Seja a inspiração que seus filhos e alunos precisam. Guardem isso no coração e até semana que vem.
No todo, o trabalho dos pais e professores será sempre de autoeducação. E nesse sentido, busque conhecer um pouco mais sobre a Logosofia, como ciência e pedagogia.
REFERÊNCIAS:
PECOTCHE, Carlos Bernardo González. Deficiências e Propensões do Ser humano. Tradução por filiados da Fundação Logosófica. Revisão de tradução de José Miranda de Oliveira. 13. ed. São Paulo: Logosófica, 2012. Disponível em:
https://logosofia.org.br/livros/deficiencias-e-propensoes-do-ser-humano/ Acesso em: 12 fev. 2025.