EDUCAMOS PARA O "INACABAMENTO"???

Inacabamento. É comum escutar que somos "seres inacabados". A afirmativa sempre me provocou reflexões...dentre elas: se sou inacabada, chegarei a ser "acabada" quando...? Eis a questão...

Por: Sheyla Fontenele

4/15/2023

man in black coat walking on sidewalk in grayscale photography
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Você Educa Seres "Inacabados"?

Inacabamento foi um tema recorrente quando fui aluna do curso de Pedagogia há muito tempo atrás. Mas era especialmente como professora de crianças, que me via envolta em incontáveis reflexões.

Um dia, em uma turma com alunos de 7 anos, pedi que desenhassem suas famílias. Uma aluninha desenhou a si bem no centro e tão somente ela. Fiquei curiosa e perguntei: “Onde estava o resto da família”. E ela respondeu...”Estão todos em mim”. Fiquei sem entender. E continuou: “Minha mãe disse que eu sou tudo o que eles me ensinaram e poderei ser ainda melhor e sempre mais”, porque sou humana. Fiquei ao mesmo tempo atônita e reflexiva. Essa foi a resposta mais inteligente que poderia ter recebido acerca do conceito de família e ao mesmo tempo, foi com essa aluna que tive esclarecido o conceito de inacabamento. Entendi ali, que todos os dias somos o resultado da sabedoria que conseguimos abarcar na relação conosco e com os demais, e não mais que isso. Cada um, em sua jornada, alcançará o melhor que pode, dentro de suas possibilidades. Nesse sentido, a IMPRONTIDÃO parece que foi algo inventado pelo homem, e não pelo Criador. Compreendo, portanto, que estamos prontos e “acabados”, não importa o estágio do conhecimento em que estejamos. Um bebê estará acabado assim quando nasce, mas há tanto o que se desenvolver para chegar a OUTROS estados de acabamento, pois a vida é MOVIMENTO, e "acabamento" em espiral ascendente é a META. 

Logo, todos os dias chegaremos a um ponto que corresponde ao que somos enquanto humanos: eternos aprendizes. A obra humana é sempre acabada e perfeita ...o que existem são estágios de evolução. Processo esse que é interminável. Tomemos, por exemplo, uma semente de maçã. Não é correto dizer que a semente é inacabada, simplesmente porque ainda não se tornou uma maçã. A semente é o que é no momento e também é, em estado de potência, o que pode vir a ser. Isso é a vida. Assim, como não podem haver montanhas inacabadas, animais inacabados, plantas inacabadas, também não há inacabamento no ser humano.

A melhor expressão que encontrei para lidar com essa questão em minhas aulas foi o conceito de "devir". Do "vir a ser". Estamos sempre em um estado de "devir", de transformação, como diriam os pré-socráticos. E isso é verdade para mim e para meus alunos. Eu não sou, e não serei também algum dia uma obra acabada, e eles também não são. Quando estou com meus alunos, procuro assumir a postura de educar para o devir, mas ao mesmo tempo, assumindo a responsabilidade ética em avançar em direção aos altos pináculos do saber, que tornam os corações mais prístinos. Em suma, "O devir é a condição natural da existência, é o movimento constante que nos impulsiona a buscar novos horizontes e a nos reinventar a cada instante" (DELEUZE, 2006).

A vida é ainda, como um rio, diria Heráclito, e em constante fluxo. E isso traz um desafio para mim como professora, já que muitas vezes sinto que devo conduzir meus alunos a um ponto de "acabamento" que foi traçado em meus planos e metas, como aprendi a fazer lá atrás, na Pedagogia. Um grande dilema nosso, professores, mas que se resolve quando se compreende que ali estamos não para “dar" currículo em "pedaços”, mas para fazer acontecer parte da viagem de nossos educandos e nossa, professores, em prol do conhecimento que nos faz melhores a cada dia.

Assim, todos nós somos metamorfoses ambulantes, em constante estado de superação e evolução. E isso faz parte da nossa natureza. E parafraseando mais uma vez Heráclito, "Nada é permanente, exceto a mudança" (2009).

REFERÊNCIAS:

DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Editora Graal, 2006.

HERÁCLITO DE ÉFESO. Fragmentos: textos escolhidos e traduzidos por José Cavalcante de Souza. São Paulo: Hedra, 2009.